4.11.12

no limite de uma narrativa

Movidos pelas exigências da vida, muitas vezes por obrigação, algumas por prazer, já não acedemos, frequentemente, a uma compreensão profunda dos diversos mecanismos de percepção do mundo. Na mudança constante de um para outro lugar, daqui para ali, cada vez nos resta menos tempo para contemplar a dimensão telúrica de um mundo subjugado à hegemonia da cultura técnica que nos “exige” que vivamos em permanente aceleração.
O ser humano é por excelência um contentor que acumula a informação que está dispersa e que, através da técnica, pretende aperfeiçoar o seu desempenho ou competências. Se o conhecimento total da informação é atribuído historicamente pelo homem à divindade enquanto entidade perfeita na qual o Universo é instantâneo, a tecnociência esforça-se por criar o elemento que contenha em si toda a memória e informação ao mesmo tempo e numa escala global. A partir do momento em que as novas tecnologias nos permitem criar a ilusão de emancipação das condições de vida na Terra (hic et nunc), passam a ser o complemento que, através da memorização instantânea, nos permite sintetizar vários tempos num só tempo – a confirmação da ubiquidade tão desejada. Trata-se de uma espécie de memória em constante expansão que simula a vida na terra e que adapta o corpo - a carne que limita o pensamento - a condições de vida exteriores à grandeza geofísica, substituindo-o por outro corpo (espectro) que já não se situa numa narrativa histórica. Se a informação dos acontecimentos não é organizada ou armazenada espacialmente, implica que estes também não se encontram exclusivamente num contexto histórico-geográfico eminentemente localizado. Circulam antes, um pouco por toda a parte e simultaneamente em lado algum.
Recentemente o fenómeno das redes sociais originou uma das maiores mobilizações gerais de que há memória e, auxiliado por dispositivos cada vez mais versáteis e portáteis, consome gradualmente uma parcela considerável do tempo no dia-a-dia dos utilizadores. Se por um lado estas funcionam como veículos excepcionais de informação, de comunicação e de propaganda (comercial ou não), por outro assistimos, no plano individual, ao fim anunciado das esferas privadas - um dos exemplos mais bizarros que encontramos com alguma frequência, é a publicação de diálogos entre duas pessoas que habitam a mesma casa. A casa, centro dos universos singulares, abre-se deste modo à dimensão exterior da ausência dos silêncios e das representações. Talvez porque o medo da privação de contactar ou ser contactado (nomofobia), consequência dos novos hábitos sociais, alastra a cada dia que passa e os sintomas dessa privação de comunicação compulsiva possam ser equiparados à ressaca de alguém viciado em nicotina, por exemplo - apesar do exagero aparente na comparação, é bom relembrar que já existem clínicas especializadas no tratamento de pacientes viciados no mundo virtual (Internet Addiction Disorder), nas quais o Facebook ocupa um lugar de destaque. Mas que segredo esconderão estas plataformas que permitem que qualquer pessoa, independentemente das suas limitações técnicas, possa partilhar e receber informação com tamanha facilidade? Que ferramentas são essas que aglomeram tanta gente, desde os mais incautos aos mais conservadores? Nada mais do que a possibilidade imediata de cada um, desde o cidadão anónimo da aldeia rural à figura pública da cidade cosmopolita, escrever e ilustrar a sua história na primeira pessoa e em tempo real. Em suma, tornar-se “googlável”!
Se considerarmos que tudo o que é conhecido pode ser analisado a partir do binómio positivo/negativo, a revolução tecnológica em curso é talvez, de todas as revoluções da História da humanidade, aquela cuja absorção pacífica por parte dos usuários, gera mais discussão sobre os ganhos e as perdas inerentes ao seu progresso, mas, paradoxalmente, a que suscita também alguma desconfiança nos indivíduos que foram apanhados no meio deste processo.
Marc Prensky no seu texto “Digital Natives, Digital immigrants” de 2001, propôs uma reflexão interessante sobre a descontinuidade sociocultural a que assistimos no decurso das últimas décadas, impulsionada pela tecnologia. Nessa tese, defende que a metodologia do ensino tradicional, concebida para educar mediante os pressupostos de antigamente, já não é viável para as gerações mais recentes que crescem rodeadas de computadores, de videojogos, de leitores de música e de toda uma panóplia de gadgets (Nativos Digitais). Mas estará o sistema educativo, dirigido e projectado por elementos que não nasceram na era digital (Imigrantes Digitais) preparado para ensinar indivíduos que funcionam melhor quando estão ligados à rede (cibercultura), que estão habituados a desempenhar várias tarefas simultaneamente e que preferem a comunicação interactiva feita a partir de gráficos e de hiperligações em detrimento dos “textos enfadonhos”? Não obstante as boas intenções de alguns Estados e o contributo inegável da simplificação de várias plataformas colocadas à disposição das massas, ainda estamos muito distantes dessa aproximação. Basta recordar que, sob a égide da tecnocracia digital, o (subaproveitado) computador Magalhães foi distribuído nos últimos anos pelos alunos nas escolas portuguesas e que apenas mais tarde se pensou na formação dos professores que, nalguns casos mais inflexíveis, continuam a proibir a utilização do “brinquedo” na sala de aula.
As vantagens da velocidade na difusão e apreensão da informação são inequívocas, no entanto resultam sempre de um projecto que o homem da tecnociência constrói progressivamente, mas que não controla o seu efeito catalisador ao qual os demais têm “obrigatoriamente” que se adaptar. Hoje, habitamos uma espécie de megalópole virtual povoada por uma sociedade espectral obcecada em ganhar tempo ao tempo e espaço ao espaço. Com todos os ganhos que reconhecemos na tecnologia, ignoramos quase sempre a perda das memórias localizadas e das pequenas histórias que, pouco a pouco, cedem lugar à impessoalidade e à descaracterização dos cidadãos entregues ao anonimato, ao sedentarismo e cada vez mais refundidos na autarcia com total desprezo pelo real.

Carlos Filipe, (2010), "No limite de uma narrativa". Revista zOOm i.t., 140, 56-57